Em 1918, a gripe era uma piada

abril 8, 2020 /

  *Domingos Meirelles

Assim que os primeiros cadáveres começaram a ser recolhidos na calçadas, abandonados pelas famílias, a Gripe Espanhola de 1918 deixou de ser ratada como chacota e desapareceu dos quadrinhos da imprensa do Rio de Janeiro. O que era chalaça e inspiração para caricaturas irreverentes semeou o pânico em todo o País. O que havia sido motivo de muito riso e pouco ciso infectou 60% da população carioca. Não se tem até hoje o número exato de mortos. Na época não se exigia notificação obrigatória dos óbitos causados pela gripe. Estima-se que cerca de 35 a 50 mil pessoas morreram no Brasil, vítimas do que os jornais chamavam ironicamente de ” a dançarina ” ” catarro russo “,” Maria Inácia “, e ” a espanhola “.
O vírus era descrito em tom de galhofa como uma arma bacteriológica inventada pelos alemães para minar o estado de espírito dos Aliados na 1ª Grande Guerra. Uma das charges que melhor traduzia essa brincadeira foi publicada pela revista Careta. Ela mostrava um submarino inimigo rondando o litoral brasileiro com o nome ” influenza espanhola ” e o numero 13 estampados no casco. O comandante da embarcação era uma caveira. Sua missão era lançar garrafas cheias de micróbios nas praias para infectar os países inimigos da Alemanha. Germes estariam sendo também inoculados em comprimidos de aspirina Fenacetina produzidas pela Bayer, indústria farmacêutica que também fabricava explosivos e agentes químicos, colaborando com o esforço de guerra alemão.” Tome uma aspirina para dor de cabeça e os germes logo circularão pelo seu corpo”, dizia-se em tom de brincadeira.
Ninguém acreditava que o vírus fosse capaz de cruzar o Atlântico e atingir o território brasileiro. Nossa população considerava-se geograficamente imune às desgraças da peste, o País havia sido poupado da primeira onda de epidemia que varreu a Europa e Estados Unidos em setembro de 1918. Não havia, portanto, o que temer.Quando menos se esperava, a gripe apareceu com todos os seus horrores. Não chegou de salto alto, exibindo-se como uma dançarina espanhola, como era retratada pela imprensa carioca. Ninguém achou graça quando ela começou a circular pela cidade vestida de preto com sua foice afiada, como nas pinturas do holandês Pieter Bruegel.

A ” influenza ” assumiu sua verdadeira face e deixou de ser vista como uma piada. As autoridades sanitárias não sabiam como enfrentar um vírus que matava dezenas de pessoas por hora. A manchete em letras gordas da Gazeta de Notícias anunciou em 15 de outubro a tragédia que se avizinhava : ” O Rio virou um vasto hospital “. Não havia médicos e remédios para combater a doença. Não se tinha Também muita informação sobre a epidemia por causa da censura militar existente na Europa e Estados Unidos. Os Aliados evitavam que o moral das tropas fosse contaminado pelas desgraças que a gripe causava.
A velocidade do contágio e o número de infectados no Rio de Janeiro era assustador. Só no dia 22 de outubro de 1918 registraram-se 920 óbitos na cidade. Não sabia-se o que fazer com tantos mortos e doentes ao mesmo tempo. Os hospitais estavam superlotados, as pessoas morriam na rua, em igrejas ou dentro de casa. Os jornais estavam cheios de histórias comoventes. A NOITE pedia às autoridades que removessem com urgência os corpos de uma família inteira, marido, mulher e uma criança recém-nascida, mortos há quatro dias no quarto onde moravam. ” Em completo abandono, os cadáveres encontram-se em adiantado estado de decomposição “, informava o jornal. Manuel Justino Ribeiro, a esposa Elvira, e o bebê morreram sem qualquer atendimento médico. Sequer receberam a piedade dos vizinhos com medo de pegarem a doença.
O pânico gerado pelo contágio vertiginoso contaminou rapidamente a população da antiga capital da República. Sempre que alguma pessoa era atingida pela gripe, pendurava-se um pedaço de pano preto do lado de fora das janelas para alertar a vizinhança e pedir ajuda às autoridades sanitárias. Um pedido difícil de ser atendido diante da dimensão da epidemia. Era comum verem-se também crianças vagando sozinhas pelas ruas do Rio, depois da morte dos pais. Uma menina de três anos encontrada em uma rua do centro foi deixada em um banco da Santa Casa de Misericórdia acompanhada de um bilhete : ” Remeto-lhe esta orfã de pai e mãe. Os pais morreram de influenza espanhola “.
Centenas de cadáveres eram colocados nas calçadas para serem removidos pelas carroças de lixo ou pelos veículos do Serviço de Higiene Pública. Muitas famílias aproveitavam-se do eficiente trabalho dos lixeiros para livrarem-se dos doentes moribundos. Eles eram recolhidos junto com os mortos e levados para os cemitérios. Ao perceberem que ainda estavam vivos, os coveiros acabavam por matá-los a golpes de pá ou enxadadas, como registrou o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues. Bondes eram vistos todos os dias puxando vagões de carga com dezenas de caixões. O número de óbitos aumentava vertiginosamente. Os mortos eram sepultados sem a realização de velórios ou qualquer cerimônia de despedida. Não podiam também ser acompanhados até os túmulos, os enterros à pé estavam proibidos. Foram também vetadas as visitas aos cemitérios no Dia de Finados. Faltavam coveiros, seja por exaustão ou porque tinham sido contaminados pela gripe. Nas ruas, pelotões policiais recrutavam à força pessoas comuns para substituí-los na abertura de covas coletivas. O excesso de abusos da polícia chegou ao conhecimento da imprensa.” A caça ao coveiro está provocando a recaída de enfermos “, denunciava A NOITE. Alberto Mendes dos Santos, ” mesmo atacado de influenza “, foi detido na porta de sua residência, na Rua do Resende, e embarcado em um bonde com outros 50 homens para enterrarem corpos no Cemitério do Caju. Alberto só foi liberado de madrugada porque ardia em febre. ” Isso não pode mais continuar. Esta é a terceira vez que formulamos nosso protesto junto às autoridades competentes, ” reclamava com indignação o vespertino fundado por Irineu Marinho.
Não havia como enfrentar a febre espanhola em  1918. O Brasil não possuía um sistema publico de saúde capaz de conter a expansão do vírus e oferecer tratamento à população. Naquela época, as pessoas que adoeciam eram atendidas por hospitais mantidos por instituições filantrópicas como a Santa Casa da Misericórdia, onde a prática médica misturava-se com a caridade, a fé cristã, e o auxílio mútuo, valores que norteavam essas entidades desde a Idade Média. Esses espaços de cura mantidos com piedosos donativos de particulares e magras subvenções do governo não tinham estrutura para socorrer o volume de vítimas causadas pela ” influenza “.
O aparecimento de tosse seca,febre,náusea,dor de cabeça e falta de ar foram inicialmente atribuídos a uma enfermidade respiratória desconhecida. A diferença entre um resfriado forte e uma gripe comum estava na velocidade do contágio e na morte precoce, no máximo dois ou três dias após a manifestação dos primeiros sintomas. Com a progressão da doença, os pacientes exibiam o rosto azulado, os pés ficavam escuros por causa da falta de oxigenação. Eles entravam em coma, e faleciam em questão de horas com os pulmões entupidos de catarro. Os médicos ofereciam diferentes diagnósticos para um mal que desconheciam. Entre as medidas preventivas recomendadas estava a inalação de vaselina mentolada, gargarejos com água e sal, água iodada, infusões com folhas de goiabeira. Indicava-se também quinino usado no combate à malária. Ele devia ser consumido em pequenas doses diárias, de 25 a 50 centigramas, durante as refeições, para que fossem evitados sintomas colaterais como zumbidos e danos irreversíveis como surdez e cegueira, inerentes ao tratamento com quinino.
As autoridades desaconselhavam aglomerações. Deviam-se evitar visitas, tomar cuidados higiênicos com o nariz e a garganta. Era recomendável sempre lavar as mãos, hábito pouco comum em 1918. A maioria da população recorria à medicina caseira, chás, emplastros, além de benzeduras, simpatias e queima de alfazema ou incenso para desinfetar o ambiente. Um medicamento milagroso anunciado pela imprensa, levou multidões a se acotovelarem nas farmácias em busca de uma abençoada formulação homeopática conhecida como ” Grippina “, que se autoproclamava ” o remédio da Grippe Hespanhola “. Ele produzia nos
doentes o mesmo efeito que uma colher de chá. Muitos recorriam a uma mistura de cachaça, alho, mel e limão que, com o passar do tempo deu origem à famosa caipirinha, onde o mel e o alho foram substituídos por açúcar.
Havia também aqueles que acreditavam no poder da própria natureza em produzir a cura espontânea das doenças. A gripe ressuscitara em alguns círculos médicos e intelectuais a antiga teoria dos miasmas há muito sepultada com as descobertas e os estudos de Louis Pasteur, responsável pelo desenvolvimento da bacteriologia. Em 1918, muita gente ainda não tinha abandonado de vez essa teoria inspirada em um clássico de Hipócrates , ” Sobre os Ares, as Águas e os Lugares “. Ela dizia existir íntima relação entre as patologias e os locais em que se desenvolviam. O cheiro dos cadáveres, espalhados pelas ruas, fortalecia a tese de que odores venenosos e os cheiros fétidos de pântanos, provenientes de matéria orgânica em decomposição, eram os responsáveis pela maioria das doenças. Algumas técnicas usadas no final do século XIX pelos defensores dessa concepção higienista foram reativadas no Rio para combater o surto da gripe. A limpeza de locais públicos passou a ser realizada com a aspersão de enxofre e vinagre. Não foram entretanto usadas grandes quantidades de perfume no interior das casas, como no passado, quando os doentes eram obrigados a respirar essências de diferentes aromas para combater os miasmas. Adotou-se a técnica de isolar os enfermos da gripe dos outros pacientes.
No Rio, eles foram levados para o Hospital São Sebastião, no Cajú, onde também ficavam confinados os portadores de febre amarela. Mas não havia leitos para tantos doentes. As autoridades sanitárias determinaram um conjunto de medida profiláticas para estancar a expansão da gripe batizada de ” limpa-velhos ” que causava maior número de óbitos entre pessoas idosas. Teatros e cinematógrafos estavam proibidos de funcionar, jogos de futebol foram suspensos, bares e bilhares, bancos, e o comércio, ficaram vazios seja por falta de funcionários ou de clientes. Sem conhecerem a etiologia da doença, os médicos empenhavam-se apenas em tentar atenuar os sintomas e rezar para que ocorresse um milagre.
Como os óbitos aumentavam a cada dia, espalhou-se deplorável boato que envolvia a Santa Casa da Misericórdia e os poucos hospitais públicos existentes. Para abrir novos leitos, os médicos estariam acelerando a morte de doentes terminais servindo aos enfermos chás envenenados. Aqueles que o tomavam por volta das 23h amanheciam mortos. Nascia a lenda do famoso ” chá da meia-
noite” que tanto revoltou a população carioca.
Mas como foi que a”influenzae espanhola”apareceu? Não foi difícil saber como ela deu o ar da sua graça no Brasil . A gripe chegou em 21 de setembro através do porto do Recife a bordo do navio-correio inglês Demerara, vindo de Liverpool, com escala em Lisboa. Além dos 72 passageiros contaminados, desembarcados na capital pernambucana, já trazia duas mulheres mortas durante a viagem. Dias depois, ” o navio da morte” seguia para Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, espalhando o vírus pelas principais cidades do litoral brasileiro, as mais atingidas pela peste. A última parada foi Buenos Aires, onde o Demerara ficou ancorado durante dois meses , porque toda a sua tripulação havia adoecido.

Presidente Rodrigues Alves

 

Quando menos se esperava, a gripe foi embora,deixando para trás um rastro de mortes, sofrimento e horror . Antes de partir, matou sua vítima mais ilustre, o presidente da República Rodrigues Alves, recém-eleito para um segundo mandato. A Nação recebeu a notícia do falecimento em estado de choque. Uma multidão acompanhou o enterro no dia 19 de janeiro de 1919. Consternada, a população manteve-se em luto fechado, mas a tristeza e o recolhimento não durou muito tempo. As pessoas logo saíram às ruas para brincar no carnaval, um dos mais animados dos últimos anos.Centenas de foliões caíram na folia com uma fantasia que assustava as crianças. Usavam mantos escuros, máscaras de caveira, e foices de papelão como se fossem a morte. No desfile dos carros alegóricos, melindrosas atiravam beijos, confete e serpentina no público. Cantavam e dançavam dentro de uma xícara imensa, onde se lia em letras grandes, ” chá da meia-noite “. Vingavam-se da gripe, como se ela tivesse partido para sempre e nunca mais voltasse.
*Domingos Meirelles é Repórter  Especial da Rede Record de
Televisão e autor de ” As Noites das Grandes Fogueiras — Uma história da
Coluna Prestes ” e ” 1930. Os Órfãos da Revolução ” .